#1

Faz cerca de duas décadas que estou escrevendo uma história.

Não é a mesma história exatamente. Mas ao mesmo tempo é. Ela me fez companhia muito antes que eu me decidisse a colocá-la no papel. Eu a rascunhei na linha 2 do metrô entre Botafogo e Praça Saens Peña, em intervalos de aulas, na biblioteca do Largo de São Francisco, em rodoviárias, em aeroportos. Ela já foi muitas coisas e teve muitas formas, até que eu desisti de defini-la. As ideias secam por meses, às vezes anos. Um dia eu acordo e uma nova trama se apresenta inteirinha dentro da minha cabeça, com diálogos e cor e textura. E aí eu sento e tento escrever o máximo possível porque sei que um dia, sem qualquer aviso prévio, vou acordar e ela não estará mais lá.

Em 2019 eu ia para a biblioteca do Barbican Centre depois do trabalho e escrevia. Eu chamava aquilo de conto, na falta de um termo melhor - era mais como um fluxo de consciência sem começo nem fim. Literalmente. Eu nunca coloquei um ponto final em nenhuma das versões que escrevi. Três meses atrás, ao me mudar, abri o caderno que me acompanhava na época e encontrei nele as sementes de minha vida atual.

Quem distribui essas migalhas em nosso inconsciente? Um dia você acorda e tem como que uma vaga lembrança. Uma música, um estado de espírito. Meses, anos depois, aquilo é devolvido. É estranha essa sensação. Eu criei essa realidade, ou fui arrastada para ela por forças além de qualquer controle? Guardei os cadernos em uma mala e fui andar. Eu penso melhor andando. Ou perto da água. Entre julho e agosto percorri tantas vezes o mesmo trecho ao longo do canal que perdi 4 quilos.

Quando era adolescente li uma entrevista do Michael Ondaatje, dizendo que quando termina de escrever uma história ela está "toda espalhada". Isso pareceu providencial para minha mente desvairada de 16 anos porque me senti autorizada a criar todos aqueles retalhos de mundos que podiam ou não ser costurados no final. Mas havia outro motivo que não queria confessar nem para mim mesma: eu morria de medo de criar uma história com começo, meio e fim. Se eu soubesse como acabava, não haveria mais escolha. Era isso que me motivava a escrever, em primeiro lugar. Eu queria ter escolhas. Queria ver todas as opções abertas.

Voltei para casa e mandei uma mensagem. Eu acho que nós conversamos dois anos atrás. Dentro da minha cabeça.

Assim, sem contexto.

Dois minutos depois veio a resposta. Eu acho muito provável.

Eu gosto de viver em uma fatia da realidade em que tudo é muito provável. Incluindo as coisas que não são.